O Vale de Lágrimas




Há alguns meses, ao passar diante de um colégio católico, presenciei uma cena que me revoltou. Uma professora, na tentativa de consolar uma mãe que havia perdido o filho de apenas um ano e meio em um acidente, dizia-lhe, com uma serenidade quase cruel: “a vida é um vale de lágrimas, é assim mesmo, não podemos reclamar, se é isso que o Senhor espera de nós…” Ora, que tipo de engano ou anestesia é necessária para aceitar semelhante sentença como se fosse um bálsamo? Mais revoltante ainda é saber que essa mesma professora, que repete resignada o refrão da dor inevitável, já colocou no mundo cinco filhos. Como alguém pode, de um lado, admitir que a vida não passa de um vale de lágrimas e, de outro, lançar tantos inocentes neste mesmo abismo de sofrimento? Em que lógica tortuosa se sustenta esse gesto? A cada criança trazida à luz, não é a própria tragédia que se multiplica? O que se pode chamar isso senão cumplicidade com a desgraça que se finge consolar?


A imagem do “vale de lágrimas” nasceu no coração da tradição cristã como metáfora do exílio humano, presente sobretudo na oração medieval Salve Regina, em que a vida terrena é descrita como passagem dolorosa rumo a uma pátria celeste. Desde então, a expressão foi sendo transmitida como um refrão litúrgico, repetido em sermões, cantos e conselhos, até se tornar uma espécie de anestesia cultural diante da dor. Ao invocá-la, não se oferece ao que sofre uma resposta, mas uma convocação ao silêncio resignado, como se o padecimento fosse a própria condição de estar no mundo. A linguagem religiosa, em vez de iluminar ou aliviar, converte-se em instrumento de domesticação da tragédia: educa o indivíduo a aceitar o inaceitável. E é nesse ponto que a contradição explode — pois se a vida é reconhecida como deserto de pranto, como justificar o gesto de multiplicar habitantes para esse mesmo deserto?


Engana-se, porém, quem pensa que tal culto à vida se restringe ao meio religioso. Recentemente, em uma live do YouTube, o neo-ateu Antônio Miranda declarou: “mesmo que meu filho tenha câncer durante a vida, eu teria ele novamente, mesmo com todas as dificuldades e sofrimentos”. Que fala repugnante! Pois o que se celebra aqui não é a coragem, mas uma forma de sadismo travestida de amor: a ideia de que o sofrimento do filho pode ser compensado pelo prazer da paternidade. Eis o mesmo paradoxo, só que sem ornamentos teológicos — a vida é admitida como dor, mas, ainda assim, insiste-se em repeti-la. Como pergunta Julio Cabrera, “não deve produzir uma forte sensação de estranheza o fato de trazer alguém ao mundo para que sobreviva?” Que ironia maior pode haver do que chamar de “dom” uma existência que se inicia em luta, em falta e em permanente ameaça?


O próprio nascimento já traz consigo um juízo implícito sobre a existência. O grito da criança ao nascer não é apenas fisiológico, mas seu primeiro comentário filosófico sobre o mundo. Por que não nasce rindo, ou ao menos serena? O parto é um arremesso forçado: o bebê é lançado no mundo contra sua vontade, em um desespero primordial que não precisou aprender. Só depois virão as carícias, os confortos e os abraços — todos tardios, todos reativos. O desespero é originário, os consolos são derivados. Essa estrutura, de dor inicial seguida por alívio temporário, repete-se pela vida inteira.


O mundo é tão ruim que nem podemos ser pessimistas de fato: encarar plenamente a verdade da nossa condição seria insuportável. Por isso, somos compelidos a criar ilusões, a fingir valores, a nos agarrar a esperanças frágeis. Este é o pessimismo estrutural: não se trata apenas de observar que há mais males que bens, mas de reconhecer que toda tentativa de atribuir valor à vida já nasce fadada a ruir sob o peso da própria realidade. Como também escreveu Cabrera, “… dada a contingência de nosso nascimento, toda dor é inútil! A dor é inútil e insuportável. Logo, ter nascido é insuportável.” Essa constatação desfaz qualquer narrativa heroica da procriação, mostrando que a própria entrada no mundo é uma violência ética impossível de reparar.


Muitos ainda tentam justificar a existência com a morte, dizendo que “ela não é totalmente negativa, pois pode nos salvar de sofrimentos piores”. Mas isso apenas revela a contradição mais profunda: se a morte pode ser vista como alívio, então é o nascimento que é o verdadeiro desastre. É ele que nos condena a precisar de uma saída.


Ainda assim, para não encarar essa contradição, muitos recorrem a justificativas como “deixar um legado”, “dar continuidade à espécie” ou “cumprir um dever biológico”. São narrativas frágeis, sustentadas mais pelo medo da ausência do que por uma real necessidade. Afinal, de que serve prolongar indefinidamente a experiência humana, se essa experiência é, em sua essência, de sofrimento e perda? Nenhum legado justifica o fardo que é imposto a cada novo ser. A continuidade da espécie não é um valor absoluto, mas uma escolha que deveria ser julgada pela qualidade da vida oferecida — e esta, sabemos, é sempre marcada pela dor.


Não há, portanto, motivo para se preocupar com a extinção: o universo não lamentará sua ausência, nem a vida precisa de sua cópia repetida. Reprodução não é heroísmo. Dar à luz uma criança apenas para que ela complete o ciclo da dor, sem preparo algum para enfrentar o mundo em que foi lançada, não é ato de amor, mas de arrogância. Não há orgulho em multiplicar lágrimas, nem honra em perpetuar um vale que nunca deixa de ser vale. O verdadeiro cuidado não está em repetir a tragédia, mas em interrompê-la.




Comentários

  1. Existe tristeza e alegria em TD na vida, o importante é nunca se arrepender das decisões q foram tomadas.

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    1. Você não entendeu o ponto do texto. Ele não está dizendo que a vida tem altos e baixos — isso é óbvio —, mas questionando se é ético colocar alguém no mundo sabendo que a existência é marcada por sofrimento inevitável. Dizer que “há tristezas e alegrias” e que “o importante é não se arrepender” é fugir da discussão central e se consolar com um clichê. O texto fala justamente dessa anestesia: da tendência humana de transformar dor em lição e culpa em orgulho, só para não encarar a brutalidade do que significa nascer

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