Céu — uma perspectiva antinatalista

 


Resumo: Este texto pretende refletir sobre o desejo universal dos seres sencientes de alcançar contentamento, examinando o que significa estar verdadeiramente satisfeito. A partir de uma perspectiva antinatalista, discuto como a promessa do céu, na tradição cristã, se relaciona com a ética de gerar novas vidas, apoiando-me em reflexões de Tomás de Aquino, sobre bem-aventurança e moralidade, e de Schopenhauer, sobre sofrimento e vontade, para questionar se a esperança de felicidade eterna altera a avaliação ética da criação de novos seres.


Parte 1 – O impulso ao contentamento e a base do querer


Os seres sencientes parecem sempre visar uma única coisa: estar contente. Mas o que significa, de fato, estar contente? O contentamento não se reduz a prazeres passageiros ou a satisfações momentâneas; ele implica uma forma de completude, uma ausência de carência que se aproxima do que os filósofos clássicos chamariam de bem supremo. Aqui, buscarei explorar como os seres humanos tentam alcançar esse estado e qual é a natureza do desejo que nos impele constantemente a buscá-lo. Além disso, refletirei sobre a questão ética e metafísica de se é justificável criar um ser senciente, mesmo considerando a possibilidade de uma bem-aventurança eterna após a morte.


Schopenhauer, em obras como A Vaidade da Existência, já indicava que a base da vontade é a deficiência, e, portanto, a dor. Desejar é carecer; carecer é sofrer. A própria estrutura do querer humano parece marcada pela insatisfação: não há desejo sem ausência, nem prazer sem reconhecimento de falta. Essa intuição, porém, pode ser ampliada quando considerada à luz da metafísica tomista. Para São Tomás de Aquino, todo ser racional tende naturalmente ao bem supremo, e é nesse movimento incessante — entre o anseio pelo que transcende e a frustração diante do mundo finito — que se encontram tanto o sentido quanto o tormento da existência. A alma humana, criada para algo que excede o mundo, transforma a realidade sensível em insuficiente: tudo que é finito se mostra incapaz de preencher o vazio que reside no coração da criatura racional.


Sempre que desejamos algo, fazemos isso para alterar algum estado de coisas ou para preservar algo que tememos perder. Essa dinâmica revela uma verdade central: a vida é marcada por insatisfação. Queremos mudar aquilo que nos incomoda; buscamos conservar aquilo que nos dá segurança ou prazer. Em ambos os casos, a dor é o ponto de partida. O prazer, longe de ser uma substância positiva, é apenas o intervalo entre duas dores, uma breve suspensão do querer. Como escreve Tomás de Aquino: “O homem é naturalmente ordenado à beatitude, mas enquanto não a possui, está privado do bem devido” (Suma Teológica, I-II, q.3, a.1). Essa privação constitui o próprio sofrimento: existir é viver em busca de algo que falta constantemente. A vida, portanto, é um movimento incessante de tentativa de restaurar uma ausência impossível de saciar.


Se assumirmos que essa análise é correta, então nosso objetivo fundamental pode ser descrito como a busca de um estado livre de insatisfação — o contentamento pleno. Schopenhauer chama esse estado de negação da vontade; Tomás de Aquino, de beatitudo, a bem-aventurança perfeita. O ponto de convergência entre ambos é evidente: contentar-se é não desejar nada. No tomismo, essa cessação do querer só ocorre quando a alma contempla Deus diretamente — a visio beatifica que constitui o Céu. Enquanto vivemos, desejamos; enquanto desejamos, sofremos. Assim, apesar de suas diferenças, o pessimismo filosófico e a teologia tomista chegam a um consenso impressionante: a vida terrena é o intervalo doloroso entre o nada e a visão do absoluto, um percurso em que a felicidade plena é prometida, mas sempre distante.


Parte 2 – O Céu, o Desejo e a Criação do Ser Senciente


Suponhamos, então, a existência de um Céu e de um Deus monoteísta, concebido segundo a tradição ortodoxa das religiões abraâmicas. Para Tomás de Aquino, esse Céu não é um lugar físico, mas um estado da alma: a posse plena do bem supremo, em que o intelecto contempla diretamente a essência divina (visio DeiSuma Teológica, I-II, q.3, a.8). A beatitude perfeita consiste nesse contato imediato com Deus, e é nele que o homem encontra o repouso final de sua vontade. Desejar Deus nesta vida é, portanto, desejar o próprio contentamento, ainda que o mundo nos distraia com inúmeros bens parciais e passageiros. A alma, nesta terra, se fatiga tentando preencher um vazio que nada sensível pode saciar, porque, como observa Tomás, “nenhum bem criado pode constituir a felicidade do homem” (Suma Teológica, I-II, q.2, a.8). O Céu, nesse contexto, é o ponto terminal desse movimento incessante: o lugar onde o querer deixa de existir, não porque se anula, mas porque se consuma plenamente.


No entanto, se considerarmos que a alma só alcança a beatitude plena após uma existência marcada por desejos insaciáveis e sofrimento inevitável, surge uma questão perturbadora: por que criar o ser senciente em primeiro lugar? Antes de existir, não há desejo, falta ou sofrimento; há apenas o nada, que é indiferente. Introduzir a existência, portanto, é inserir um ser em um ciclo de carência que não existia previamente. A teologia tomista responderia que a criação é uma efusão do bem divino, pois “é próprio do bem difundir-se” (Suma Teológica, I, q.5, a.4*). Deus cria não por necessidade, mas por superabundância de bondade. Mesmo assim, à luz do antinatalismo, permanece a inquietação moral: se a beatitude é o destino natural da criatura e antes de existir ela nada sofre, qual justificativa ética há para submetê-la a um “vale de lágrimas” apenas para, ao fim, descansar em Deus? A criação insere o ser num circuito inevitável de privação e redenção, que do ponto de vista do sofrimento poderia ser evitado.


Tomás de Aquino sustenta que a bem-aventurança é o fim último que move toda criatura racional. Mas se todo desejo é dor e toda satisfação é apenas alívio temporário, o caminho até o Céu é inevitavelmente uma pedagogia de sofrimento. O homem nasce inclinado à felicidade, mas só a alcança após desejar o impossível e consumir-se nesse querer. A contradição torna-se clara: fomos criados para um bem que não podemos possuir por nós mesmos. Como disse Agostinho, “a alma só repousa quando repousa em Ti” — mas o repouso exige primeiro o cansaço, e o cansaço é sofrimento. O Céu, no esquema tomista, representa o fim perfeito; porém, o preço de alcançá-lo é exatamente aquilo que Schopenhauer denunciou: desejar até o limite da dor.


Portanto, a criação de um ser senciente surge como uma tensão ética e metafísica profunda. Por um lado, há a promessa da plenitude e da felicidade eterna; por outro, a inevitabilidade do sofrimento que acompanha a existência. A criação, mesmo movida pela bondade divina, coloca a criatura diante de um dilema: viver é sofrer, mas viver é também a única forma de atingir o bem supremo. Essa tensão é o cerne da reflexão entre pessimismo e teologia: enquanto o caminho para a beatitude é aberto e garantido em perspectiva metafísica, ele não escapa ao preço do sofrimento, da falta e do desejo incessante.


Parte 3 – Prazer Infinito e Beatitude Perfeita


Alguém poderia argumentar que é o prazer infinito que se experimenta no céu que faz valer a pena trazer seres conscientes à existência. Contudo, se nosso objetivo é estar contente — isto é, viver sem insatisfação —, por que o prazer infinito seria melhor que o vazio infinito? Schopenhauer diria que o prazer é apenas a supressão temporária da dor, um intervalo entre dois sofrimentos. Se assim é, o prazer não tem substância positiva; ele é uma sombra lançada pela ausência do tormento. Tomás de Aquino, de modo diferente, distingue claramente entre o prazer sensível e a beatitudo perfecta: o primeiro nasce da mutabilidade do corpo, o segundo é um repouso do espírito em Deus. “A felicidade perfeita não consiste no deleite corporal, mas na visão da essência divina”, escreve ele (Suma Teológica, I-II, q.4, a.1 e q.3, a.8*). O prazer, portanto, é efêmero e relativo; a beatitude é imutável e absoluta.


O argumento antinatalista, porém, toca em algo mais fundo: mesmo que o céu ofereça essa perfeição estática, por que criar o desejo que conduz a ela? Se a beatitude é o cessar do querer, a criação parece instaurar, paradoxalmente, a necessidade de desejar para, ao fim, extinguir o próprio desejo. Em termos tomistas, Deus cria as criaturas racionais “para participarem de Sua bem-aventurança” (I, q.12, a.1), mas tal participação só ocorre após um percurso de privação, ignorância e dor. A bondade divina se manifesta no fim, mas o meio é repleto de males que, embora acidentais, são inevitáveis. Assim, mesmo a teologia mais ortodoxa não consegue eliminar a tensão entre a bondade da finalidade e a crueldade do processo.


Outra objeção teísta poderia afirmar que o céu contém bens infinitos — os “bens platônicos” —, e que a experiência de tais bens é o ápice da perfeição. Todavia, desejar o bem ainda é desejar, e, portanto, ainda é carecer. A alma, enquanto tende, não repousa; e o repouso é o que chamamos contentamento. A ausência de desejo anterior à existência parece, então, mais próxima da serenidade do que a longa jornada pela falta. Mesmo o céu, se concebido como experiência, ainda envolve uma relação entre o sujeito e o objeto do desejo, o que contradiz a própria ideia de satisfação plena. Tomás tentará resolver isso afirmando que, na visão de Deus, o intelecto não deseja mais, porque possui o próprio Bem — mas essa solução apenas reafirma o problema moral: para que fazer nascer o desejo que, ao fim, precisará ser aniquilado na visão divina?


Dessa forma, se o prazer terreno é a suspensão da dor e o prazer celeste é o repouso no absoluto, ambos partem de uma mesma lógica: só há bem porque antes houve privação. Criar um ser que precisa passar por essa privação para alcançar o bem é, portanto, inserir o sofrimento como condição de sentido. A teologia de Tomás vê nisso o esplendor da ordem divina; o antinatalismo vê apenas uma necessidade que poderia não ter existido. Entre o silêncio eterno do nada e o coro eterno da bem-aventurança, permanece a questão: qual deles realmente é mais piedoso?



Conclusão – Criação, Sofrimento e Beatitude


A reflexão conjunta de Schopenhauer e de Tomás de Aquino revela uma tensão profunda na condição dos seres sencientes: somos simultaneamente criaturas destinadas à beatitude e prisioneiras da dor que nos move até ela. O pessimismo filosófico nos lembra que desejar é sofrer; cada impulso ao contentamento é, na verdade, a consciência de uma falta irreparável. A teologia tomista acrescenta uma dimensão metafísica: o sofrimento não é mero acidente, mas parte de um movimento teleológico que conduz a alma à posse do bem supremo, à visio beatifica, ao repouso definitivo em Deus.


Quando refletimos sob a lente do antinatalismo, essa aparente harmonia entre criação e finalidade se dissolve. Criar um ser senciente é inseri-lo em um ciclo inevitável de carência e desejo, em que o caminho para a plenitude exige experimentar dor, frustração e incompletude. Mesmo que o destino final seja a felicidade perfeita, o preço do percurso — a própria existência terrena — permanece marcado pela insuficiência e pelo sofrimento.


Essa síntese revela uma tensão ética e metafísica inevitável: criar seres dotados de vontade não é moralmente neutro, pois introduz sofrimento onde antes havia apenas inexistência. O Céu, como repouso final da alma, não apaga o vale de dores pelo qual a criatura teve de passar. Assim, a existência surge como um paradoxo: destinada ao absoluto, mas atravessada pelo relativo; prometida à bem-aventurança, mas marcada pelo sofrimento. Reconhecer essa tensão é a forma mais honesta de compreender tanto o pessimismo filosófico quanto a esperança teológica: a vida é, simultaneamente, um caminho de sofrimento inevitável e uma promessa de plenitude inalcançável antes do seu término.


Por: Marcus Gualter

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