Antinatalismo - A Solução



Alguns meses atrás, deparei-me com uma filosofia que desestabilizou de forma profunda minhas convicções mais íntimas. Foi como se palavras, e não punhos, atingissem diretamente a região mais vulnerável da consciência. Já havia lido muito sobre sofrimento, morte, niilismo — temas pesados, sim —, mas nada me abalou tanto quanto o antinatalismo. Não se tratou apenas de uma mudança de opinião; foi uma reconfiguração radical do olhar. Passei a enxergar o mundo como se tivesse, pela primeira vez, retirado um véu. De repente, percebi o óbvio ignorado: o verdadeiro problema não é morrer. O verdadeiro erro é nascer.


O antinatalismo, para quem nunca teve contato com o conceito, é uma doutrina simples na formulação, mas devastadora em suas implicações: o ato de gerar uma vida já constitui, em si, um dano. Não se trata apenas de lamentar o sofrimento que permeia a existência, mas de questionar a própria legitimidade de convocar alguém à experiência da vida. O nascimento, nesse horizonte filosófico, não é um milagre — é uma falha ética. E pior: uma falha evitável. Ninguém clama pelo ser. Ninguém implora, a partir do nada, por uma chance de sofrer, de ser decepcionado, de adoecer, de morrer. E ainda assim, seguimos reproduzindo, quase como automatismos, indiferentes ao custo ontológico que essa convocação impõe.


Longe de ser um lamento niilista ou uma expressão de desespero pessoal, o antinatalismo emerge como uma ética da lucidez e da compaixão radical. É a coragem de reconhecer que, se a vida é um palco recorrente de dor, e nenhum nascimento é solicitado, então o gesto mais amoroso não é dar a vida — é recusar-se a impô-la. Entender que viver é, na melhor das hipóteses, uma ferida em constante processo de cicatrização, pontuada por breves anestesias, deveria ser suficiente para reconsiderar a responsabilidade de gerar outrem. Trazer alguém ao mundo, nesses termos, equivale a convidá-lo para um campo de batalha sob o pretexto de um piquenique.


Peter Wessel Zapffe, em sua análise lúcida e implacável da condição humana, descreve a humanidade como uma espécie que desenvolveu consciência em excesso — uma hipertrofia trágica da inteligência. Para ele, a consciência não é um dom, mas uma falha evolutiva: um descompasso entre a mente reflexiva e a natureza indiferente. A busca por significado, a obsessão com a morte, a angústia diante do absurdo — tudo isso nos arranca de uma existência puramente instintiva e nos lança em um estado de constante desconforto metafísico. A resposta humana a essa tragédia não é o enfrentamento direto, mas a evasão. Isolamento, ancoragem, distração e sublimação são, segundo Zapffe, os mecanismos psíquicos através dos quais contornamos a consciência do absurdo, evitando a confrontação com o vazio que nos habita.


David Benatar, por outro lado, desenvolve sua tese de maneira rigorosamente analítica. Sua “assimetria” estabelece uma distinção ética entre o prazer e a dor: enquanto a presença da dor é sempre um mal, a ausência do prazer, quando não há um sujeito para senti-lo, não é um mal, tampouco uma perda. Com isso, Benatar sustenta que nunca ter existido é preferível a existir — não por repulsa à vida, mas por uma consideração racional dos danos inevitáveis que ela impõe. A proposta não visa incentivar o suicídio, mas sim questionar a moralidade do nascimento. Para ele, o problema não está em viver mal, mas no próprio fato de existir — um risco imposto sem consentimento, num mundo onde a dor é garantida e o prazer, incerto.


Julio Cabrera amplia esse diagnóstico com uma abordagem existencial e materialista ainda mais radical. Ele contesta a assimetria de Benatar, argumentando que a diferença entre prazer e dor é secundária diante da estrutura negativa da existência. Viver, para Cabrera, é submeter-se a um processo contínuo de deterioração, esforço e sofrimento. A vida não é um presente, mas um encargo. Mesmo os estados mais neutros da experiência — o tédio, a espera, a repetição — revelam o caráter insustentável da existência. A não existência, nesse quadro, não é apenas preferível: é eticamente superior. Seu antinatalismo não é fundado apenas na compaixão ou na lógica, mas em uma crítica ontológica à própria condição de estar no mundo.


Esses três pensadores, cada qual a seu modo, convergem numa mesma direção: viver é, no fundo, um empreendimento fadado ao fracasso. Zapffe denuncia a tragédia da consciência, Benatar aponta a desvantagem de existir, e Cabrera destrincha a negatividade estrutural da vida. O resultado é um questionamento profundo da legitimidade moral de procriar. A ética tradicional, fundada na valorização da vida a qualquer custo, é substituída por uma ética da recusa — recusar-se a perpetuar uma experiência marcada pelo sofrimento inevitável e pela falência de sentido.


E esse olhar não é exclusividade do pensamento contemporâneo. Tradições espirituais milenares já intuíam essa condição. O budismo, por exemplo, descreve o samsara como um ciclo interminável de nascimento, sofrimento e morte, alimentado pelo desejo e rompido apenas pela renúncia. Schopenhauer, por sua vez, apresenta a vida como manifestação de uma “vontade” cega e insaciável, uma força irracional que nos arrasta para o querer e, portanto, para o sofrimento. Já o gnosticismo oferece uma das críticas mais radicais ao mundo: nele, a criação não é obra de um deus benevolente, mas de um demiurgo perverso ou ignorante. O mundo material é uma prisão, e o nascimento, uma queda — um exílio ontológico. Dentro dessa perspectiva, o antinatalismo torna-se quase um ato de redenção: recusar-se a lançar mais um ser no cárcere da existência.


Há quem responda a essas ideias com um ataque simplista: “Esse tipo de pensamento só é possível para quem tem o luxo de refletir.” Acusam o antinatalismo de ser uma filosofia de privilegiados, alienada do sofrimento real. Mas essa crítica, embora apelativa, perde força diante da realidade histórica da filosofia. Os próprios pensadores da Antiguidade — Platão, Aristóteles, mesmo os estoicos — só puderam filosofar porque estavam, de alguma forma, libertos da urgência da sobrevivência. Epicteto, que começou sua vida como escravo, só desenvolveu sua filosofia após conquistar a liberdade. Isso apenas reforça o ponto: a reflexão profunda sobre a vida não surge no meio da miséria bruta, mas no breve intervalo entre duas dores. A fome não permite questionamentos metafísicos — ela exige ação. Só quando a barriga está cheia é que o vazio se revela. E a pergunta que surge é inevitável: “Agora que sobrevivi… era só isso?”


A maioria das pessoas parece viver imersa em uma espécie de delírio cor-de-rosa, sustentando a crença irracional de que, no fim, tudo dará certo. Essa não é apenas uma inclinação psicológica benigna; trata-se de um fenômeno sistematicamente estudado, conhecido como viés do otimismo. A neurocientista Tali Sharot demonstrou que cerca de 80% das pessoas superestimam a probabilidade de eventos positivos em suas vidas, ao mesmo tempo em que subestimam as possibilidades de tragédias, fracassos e sofrimentos. Esse viés atua como um véu narcotizante, protegendo o indivíduo da realidade nua e crua — mas ao custo de um autoengano estrutural.


Em contraste, a teoria do realismo depressivo, proposta por Lauren Alloy e Lyn Abramson, sugere que indivíduos com depressão leve tendem a possuir uma percepção mais precisa da realidade — especialmente quanto ao grau de controle que realmente exercem sobre suas vidas. Isso não implica, é claro, que o sofrimento psíquico seja desejável, mas aponta para algo desconcertante: que a dor pode, em certos casos, abrir os olhos, enquanto a esperança costuma fechá-los.


Enquanto isso, a reprodução permanece culturalmente blindada, sacralizada. O ato de gerar filhos é exaltado como um gesto nobre, natural, quase divino. Jovens que anunciam sua intenção de ter filhos são parabenizados de imediato — como se tivessem cometido um ato de coragem e generosidade indiscutível. Mas poucos ousam fazer a pergunta decisiva: quem garantirá que essa nova vida agradecerá por ter sido lançada ao mundo? A sociedade ajoelha-se diante de berços, mas ignora a ferocidade da realidade que aguarda os recém-nascidos.


Um teste moral poderia desmascarar essa anestesia coletiva: você aceitaria, sem hesitar, que qualquer uma das criaturas esmagadas pela existência fosse seu próprio filho? O indigente que se desintegra nas ruas, a criança terminal com dores insuportáveis, o homem mutilado por doenças congênitas e abusos — se você não aceitaria, como pode lançar alguém na roleta genética do mundo e dizer, com candura, “foi por amor”? O amor não anula a dor. E o azar não recai sobre quem decide — recai sobre quem é condenado a existir.


Essa recusa em refletir sobre o nascimento não é casual: é sistêmica. A cultura opera como um aparato de repressão filosófica. Filmes, músicas, religiões, slogans publicitários e gurus de autoajuda — todos giram em torno da repetição hipnótica de que “a vida vale a pena”. Mas essa pergunta só existe porque, secretamente, todos intuem que a vida não se sustenta por si. Ninguém indaga se respirar ou piscar os olhos vale a pena. Apenas o que é intragável precisa ser justificado.


Como escreveu Emil Cioran:


“Não corremos em direção à morte. Fugimos da catástrofe do nascimento.”


Essa inversão é definitiva. A morte não é o trauma — o trauma é o surgimento. Nascemos como exilados de um nada pacífico e nos debatemos até o fim tentando construir abrigos contra a catástrofe de ter sido.


No âmago do antinatalismo não está um repúdio à vida em si, mas uma objeção ética à imposição da existência. Trata-se de uma recusa moral diante do ato de convocar outro ser ao palco do sofrimento sem que este tenha podido consentir. Porque, sim, o nascimento é uma emboscada: uma armadilha biológica disfarçada de milagre. Vem ao mundo um ser que, antes mesmo de compreender o que é, já está imerso em carências, pressões e feridas — e tudo isso lhe será vendido como “a experiência de viver”.


O mundo como o conhecemos é uma espécie de lavagem cerebral coletiva, sustentada por desejos fabricados, esperanças recicladas e metas impostas. A vida converte-se numa linha de montagem de frustração. O indivíduo é persuadido desde o início a acreditar que tudo tem sentido, que tudo é superável — quando, na realidade, a própria estrutura da existência já é um campo minado de incertezas e angústias.


Alguém poderia dizer: “mas eu sou feliz”. E é bom que seja. Mas a exceção não pode fundamentar o juízo ético universal. Se cem pessoas forem esmagadas por um elevador e uma sair sorrindo, isso não transforma o elevador em uma boa invenção. O nascimento é esse elevador. E a maioria é esmagada — pela ansiedade, pelo luto, pela privação, pela doença, pela lucidez.


Não, a vida não ganha valor porque é difícil. Essa crença, profundamente enraizada, de que o sofrimento dignifica, purifica ou eleva, é uma das mais perversas heranças morais da tradição. A dor não é uma virtude — é uma calamidade. E, se pode ser evitada, deveria sê-lo. O sofrimento não precisa de exaltação metafísica, mas de contenção ética.


Quando corretamente compreendido, o antinatalismo não é niilismo, mas responsabilidade última. É o rompimento consciente com uma cadeia ancestral de reprodução automática, movida a instinto e esperança. É o instante em que alguém diz: “em mim, termina”. Um gesto de lucidez numa espécie mergulhada em promessas falsas.


E é evidente que isso ofende. Essa ideia colide com os pilares da civilização: o instinto reprodutivo, a fé religiosa, o culto à família, a economia baseada no crescimento demográfico. Dizer que não se deve ter filhos é mais que um argumento — é um ato herético contra um dogma sacralizado. Daí o riso nervoso, o desprezo automático, a hostilidade cega: o incômodo revela a profundidade da ameaça. A mente se retrai quando algo fere sua estrutura mais íntima.


O antinatalismo não oferece utopias. Não quer reformar o mundo — quer interrogar sua própria origem. Ele não diz “vamos melhorar as condições da vida”; ele ousa dizer: “talvez o erro foi começar a viver.” É por isso que causa pavor. Porque, se for verdade, então aquilo que celebramos — o nascimento — é o próprio epicentro da tragédia. A festa se torna crime. O batismo da existência se revela como uma condenação inadvertida.


E diante dessa consciência, vem a pergunta inevitável: e agora?

O antinatalismo não responde com programas políticos, nem com revoluções redentoras. Ele propõe algo mais austero: uma recusa serena, radical e silenciosa. Um limite. Um basta. E nesse gesto de contenção — que parece, aos olhos do mundo, uma derrota — talvez resida a única vitória possível: não contra a vida, mas contra a repetição cega da dor.


Talvez o maior gesto de amor, hoje, seja dizer “não”. Não à reprodução automática da espécie. Não à exaltação quase religiosa da procriação. Não à fantasia de que trazer alguém ao mundo é sempre um presente — quando, em tantos casos, é um fardo. Um peso silencioso que o outro vai carregar sozinho, por décadas, até que um dia não consiga mais.


Se, como dizia Schopenhauer, o mundo é um inferno onde as almas se condenam mutuamente ao nascimento, então o antinatalismo é simplesmente a recusa em continuar cúmplice. É se negar a assinar mais um mandado de sofrimento. É não compactuar com a condenação de uma alma que sequer teve a chance de dizer “sim”. Porque é isso que acontece quando alguém nasce: uma pena perpétua é decretada sem julgamento, sem defesa, sem nem mesmo um advogado de ofício.


E não adianta contra-argumentar com clichês: “mas e as coisas boas da vida?”, “e o amor?”, “e as alegrias, as descobertas, os momentos bonitos?” — sim, existem. Mas são compensações, não justificativas. São o oásis ilusório num deserto de areia movediça. O problema não é que a vida seja só dor — é que ela contém dor o bastante para que o risco nunca se justifique. É como inscrever alguém em um jogo onde há 70% de chance de perder um braço e, no melhor dos cenários, o prêmio é um chocolate. Quem, em plena lucidez, submeteria um outro ser a isso?


O antinatalismo não quer tirar de ninguém o direito de continuar. Não é um chamado ao suicídio, muito menos à misantropia. É apenas a recusa ética de obrigar alguém a começar. E isso faz toda a diferença. Uma coisa é suportar a existência porque já se está nela. Outra, bem distinta, é decidir que alguém mais também deve suportá-la. A verdadeira arrogância humana está aí: no gesto de criar outro ser e presumir que isso é um bem. Como se fosse possível garantir que a vida dele vá valer a pena. Como se fosse justo empurrá-lo do alto do ser e aplaudir a queda.


No fundo, todos sabemos — embora prefiramos fingir que não — que nada pode ser garantido. Não se pode assegurar saúde, nem amor, nem dignidade, nem sequer uma trégua mental. No máximo, o que se oferece a quem nasce é uma aposta cega: que talvez a existência dele seja um pouco menos miserável do que poderia ser. Mas torcer não é ética. Esperar o melhor não é responsabilidade. Criar uma vida nesse cálculo é uma espécie de roleta russa moral que só parece aceitável porque está culturalmente normalizada. A insanidade generalizada tomou o lugar da lucidez.


A maioria dos pais ama seus filhos — depois que eles existem. Antes disso, não há amor, só impulso. O que há é desejo: de continuidade, de projeção, de imortalidade simbólica. Um desejo de seguir o script, de repetir o ciclo, de tapar o buraco ontológico com um corpo alheio. A criança, longe de ser um milagre, é a materialização concreta de uma carência — é a resposta muda a uma pergunta nunca feita. Porque ninguém pode perguntar se ela queria estar aqui. E é justamente essa impossibilidade que torna o gesto de procriar eticamente indefensável.


À objeção mais comum — “mas se meus pais tivessem pensado assim, eu não estaria aqui” — a única resposta honesta é: exatamente. Você não estaria sendo corroído por um corpo que degrada, nem atolado em ansiedade, nem acorrentado à certeza da morte. Você estaria no único estado verdadeiramente isento de dor, de perda, de expectativa. O não-nascido é o único que não sofre. É o único invulnerável. Não é uma ameaça, nem um lamento: é uma constatação fria, lógica e irrefutável.


E isso nos leva de volta à pergunta essencial: por que continuar? Por que manter viva essa engrenagem de carne consciente que geme, apodrece e morre em silêncio? Só porque já estamos dentro dela? Só porque os mitos da cultura, da tradição e da esperança nos ensinam a dizer amém? Talvez seja hora de recusar, não de repetir. Talvez o verdadeiro avanço ético não esteja em multiplicar a vida, mas em proteger o vazio. Porque a única maneira de garantir que alguém jamais sofrerá neste mundo — é não forjando sua entrada no cárcere do ser.


Fecho este ensaio com a única bênção legítima que a existência concede: a ausência dela. Como está dito no Eclesiastes, esse relicário da lucidez perdida:


“Pus-me, então, a considerar todas as opressões que se exercem debaixo do sol. Eis aqui as lágrimas dos oprimidos, sem ninguém para consolá-los. Seus opressores fazem-lhes violência, e ninguém os consola. E julguei os mortos, que já faleceram, mais felizes que os vivos, que ainda estão em vida; porém, mais feliz que ambos é aquele que ainda não nasceu, porque não viu o mal que se comete debaixo do sol.”

— Eclesiastes 4:1-3


 







Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Céu — uma perspectiva antinatalista

O Vale de Lágrimas