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Teodiceias — uma análise filosófica partindo de Júlio Cabrera e Arthur Schopenhauer

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  O termo teodiceia foi formalmente introduzido por Gottfried Wilhelm Leibniz no início do século XVIII, em sua obra  Essais de Théodicée  (1710), para designar o esforço racional de justificar a justiça de Deus ( theós  +  díkē ) diante da presença do mal, do sofrimento e da imperfeição no mundo. Entretanto, o problema que a teodiceia tenta resolver é muito mais antigo, aparecendo já na Antiguidade tardia com Santo Agostinho, que negava ao mal um estatuto ontológico próprio ao concebê-lo como privação do bem ( privatio boni ) e atribuía o mal moral ao mau uso do livre-arbítrio humano, concepção que seria sistematizada na Idade Média por Tomás de Aquino no interior da escolástica; paralelamente, encontra-se a chamada teodiceia pedagógica ou do amadurecimento moral, associada a Irineu de Lyon, segundo a qual o sofrimento funciona como meio para o desenvolvimento espiritual da criatura. É, contudo, com Leibniz que essas tentativas dispersas recebem um nome e uma f...

Céu — uma perspectiva antinatalista

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  Resumo:  Este texto pretende refletir sobre o desejo universal dos seres sencientes de alcançar contentamento, examinando o que significa estar verdadeiramente satisfeito. A partir de uma perspectiva antinatalista, discuto como a promessa do céu, na tradição cristã, se relaciona com a ética de gerar novas vidas, apoiando-me em reflexões de Tomás de Aquino, sobre bem-aventurança e moralidade, e de Schopenhauer, sobre sofrimento e vontade, para questionar se a esperança de felicidade eterna altera a avaliação ética da criação de novos seres. Parte 1 – O impulso ao contentamento e a base do querer Os seres sencientes parecem sempre visar uma única coisa: estar contente. Mas o que significa, de fato, estar contente? O contentamento não se reduz a prazeres passageiros ou a satisfações momentâneas; ele implica uma forma de completude, uma ausência de carência que se aproxima do que os filósofos clássicos chamariam de bem supremo. Aqui, buscarei explorar como os seres humanos tenta...

O Vale de Lágrimas

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Há alguns meses, ao passar diante de um colégio católico, presenciei uma cena que me revoltou. Uma professora, na tentativa de consolar uma mãe que havia perdido o filho de apenas um ano e meio em um acidente, dizia-lhe, com uma serenidade quase cruel: “a vida é um vale de lágrimas, é assim mesmo, não podemos reclamar, se é isso que o Senhor espera de nós…” Ora, que tipo de engano ou anestesia é necessária para aceitar semelhante sentença como se fosse um bálsamo? Mais revoltante ainda é saber que essa mesma professora, que repete resignada o refrão da dor inevitável, já colocou no mundo cinco filhos. Como alguém pode, de um lado, admitir que a vida não passa de um vale de lágrimas e, de outro, lançar tantos inocentes neste mesmo abismo de sofrimento? Em que lógica tortuosa se sustenta esse gesto? A cada criança trazida à luz, não é a própria tragédia que se multiplica? O que se pode chamar isso senão cumplicidade com a desgraça que se finge consolar? A imagem do “vale de lágrimas” nas...

Sentenças Sobre uma Existência Cruel

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  Há poucos meses, no condado de Cecil, Maryland, a menina de apenas três anos, Nola Dinkins, foi encontrada morta, envolta em filme plástico e abandonada dentro de uma mala em um terreno baldio. Sua mãe relatara falsamente que a criança havia sido sequestrada — mas a investigação revelou que Nola fora brutalmente espancada até perder a consciência com um cinto, em 9 de junho de 2025, em casa. Após uma tentativa frustrada de reanimá-la, a mãe e o padrasto colocaram o corpo na mala e o descartaram. Ambos foram presos e acusados de homicídio, abuso infantil e ocultação de cadáver, podendo enfrentar prisão perpétua.( Link para notícia ) Esse horror não é apenas uma tragédia isolada. Ele força um confronto direto com a arquitetura da realidade sensível: um território onde a inocência é esmagada e arremessada em um moedor de carne chamado existência. A carne não serve de abrigo, mas de cárcere pulsante, num campo saturado de violências silenciosas e irreversíveis. Não há promessa de red...