Teodiceias — uma análise filosófica partindo de Júlio Cabrera e Arthur Schopenhauer
O termo teodiceia foi formalmente introduzido por Gottfried Wilhelm Leibniz no início do século XVIII, em sua obra Essais de Théodicée (1710), para designar o esforço racional de justificar a justiça de Deus (theós + díkē) diante da presença do mal, do sofrimento e da imperfeição no mundo. Entretanto, o problema que a teodiceia tenta resolver é muito mais antigo, aparecendo já na Antiguidade tardia com Santo Agostinho, que negava ao mal um estatuto ontológico próprio ao concebê-lo como privação do bem (privatio boni) e atribuía o mal moral ao mau uso do livre-arbítrio humano, concepção que seria sistematizada na Idade Média por Tomás de Aquino no interior da escolástica; paralelamente, encontra-se a chamada teodiceia pedagógica ou do amadurecimento moral, associada a Irineu de Lyon, segundo a qual o sofrimento funciona como meio para o desenvolvimento espiritual da criatura. É, contudo, com Leibniz que essas tentativas dispersas recebem um nome e uma formulação sistemática, culminando na tese de que este é o “melhor dos mundos possíveis”, no qual os males particulares seriam condições necessárias para a realização da máxima harmonia e perfeição do todo criado.
Entre os principais críticos das teodiceias, destacam-se inicialmente Voltaire, que ridiculariza a tese leibniziana do “melhor dos mundos possíveis” em Cândido, expondo a obscenidade moral de justificar catástrofes e sofrimentos concretos em nome de uma harmonia abstratas. David Hume, nos Diálogos sobre a Religião Natural, desmonta a coerência lógica da ideia de um Deus simultaneamente onipotente, onisciente e benevolente à luz da evidência empírica do mal. Immanuel Kant declara ilegítima qualquer teodiceia racional, afirmando que a razão humana não tem acesso aos desígnios divinos e que tais tentativas resultam em pseudo-justificações morais do sofrimento e Friedrich Nietzsche, que vê na teodiceia uma estratégia niilista de negação da vida, pela qual o sofrimento é moralizado e santificado para preservar a crença em um Deus justo. O restante deste ensaio será dedicado à uma análise das críticas às teodiceias em Arthur Schopenhauer e Júlio Cabrera.
Antes de examinar diretamente a crítica de Júlio Cabrera às teodiceias, é necessário situar sucintamente algumas de suas teses centrais, que funcionam como pressuposto conceitual de sua argumentação: Cabrera desenvolve uma ética negativa, onde se opõe a éticas afirmativas(as quais apontam a vida como um valor básico, sem preocupação de demonstração), declarando a possível incompatibilidade entre vida e ética, isto é: ou viver a vida, ou guiar-se pela exigência ética. Cabrera reúne os pressuposto fundamentais das éticas afirmativas naquilo que ele chamada de Articulação Ética Fundamental(AEF): " ‘Nas decisões e ações, devemos levar em consideração os interesses morais e sensíveis dos outros e não apenas os próprios, tentando não prejudicar os primeiros e não dar uma primazia sistemática aos últimos apenas pelo fato de serem nossos interesses’. Imperativos mais específicos da AEF são: não manipular aos outros, não prejudicar aos outros”.
Na filosofia de Júlio Cabrera, o questionamento do valor da vida humana está intrinsecamente ligado à análise da morte e, sobretudo, da mortalidade. Cabrera distingue entre a morte pontual (MP) — o acontecimento datável do desaparecimento factual de um indivíduo, como quando dizemos que Schopenhauer morreu em 21 de setembro de 1860 — e a morte estrutural (ME), ou mortalidade, que designa o processo contínuo de desgaste, declínio e desocupação que se inicia no próprio nascimento. A MP não é um evento súbito, mas a consumação de um processo que começa com o vir-a-ser: nascer já é começar a morrer. Por isso, a ME não é algo que acontece dentro da vida como um acidente eventual, mas algo que pertence à própria estrutura do ser, de modo que o vir a ser é intrinsecamente mortal. A morte, assim, não é apenas um fato intra-mundano e datável, mas uma dimensão constitutiva da existência mesma. É nesse sentido que Cabrera afirma que a ética negativa está vinculada a uma ontologia negativa: se o ser humano nasce já inserido numa estrutura de mortalidade inevitável, então a questão moral decisiva não é apenas como viver sabendo que se morrerá, mas se o próprio nascer, enquanto inserção compulsória na mortalidade, pode ser considerado moralmente justificável. A partir dessa concepção, Cabrera problematiza qualquer ética afirmativa da vida e prepara o terreno para sua crítica radical às tentativas de justificar a criação, a procriação e, por extensão, as teodiceias que buscam legitimar moralmente um mundo estruturalmente marcado pela dor, pela perda e pela morte.
Deste modo, pode-se iniciar a investigação das teodiceias a partir da perspectiva de Júlio Cabrera, cuja crítica não se limita a questionar a coerência lógica das justificações tradicionais de Deus, mas atinge o próprio fundamento ético da criação. Inserida no horizonte de sua ética negativa, essa abordagem desloca o problema do mal da pergunta clássica — por que Deus permite o sofrimento? — para uma questão mais radical: por que criar um mundo no qual o sofrimento é estrutural e inevitável? Ao recusar as categorias afirmativas que tomam a existência como um bem em si, Cabrera sustenta que a não-criação constitui uma alternativa moralmente relevante, embora sistematicamente excluída pelas teodiceias clássicas. É nesse sentido que sua análise atinge diretamente o núcleo da defesa leibniziana, não ao negar que este possa ser o melhor dos mundos possíveis, mas ao exigir a demonstração — ausente — de que criar qualquer mundo é eticamente superior a não criar nenhum. Todos os trechos de Cabrera mobilizados a seguir pertencem à obra “Ética e suas negações”, na qual essa crítica é desenvolvida de forma sistemática e articulada:
“Coloca-se a questão da "obrigação moral de ser pai" no plano das Teodiceias: qual será a ética da criação de um mundo por parte de Deus? Por que Deus tinha de criar um mundo, sabendo que seria um mundo imperfeito? A minha hipótese é: porque a Ética divina é profundamente afirmativa. Caso não criasse um mundo imperfeito, Ele não criaria nada, e esse nada é o que uma Ética afirmativa - humana ou divina - não está em condições de enfrentar. Leibniz preocupa-se, no papel de advogado de defesa de Deus, em deixá-Lo livre de qualquer culpa, mostrando que este é, apesar de tudo, o melhor dos mundos possíveis. Que seja! Mas Leibniz tinha de mostrar, além disso, que este mundo é melhor do que não criar absolutamente nenhum mundo. E isso é indemonstrável com categorias exclusivamente afirmativas.”
Prosseguindo em sua crítica à teodiceia leibniziana, Cabrera desloca o debate do plano da comparação entre mundos possíveis para uma questão deliberadamente excluída pela ética afirmativa: a alternativa moral da não-criação. Para ele, o erro decisivo de Leibniz não está apenas em defender que este seja o melhor dos mundos possíveis, mas em pressupor, sem justificativa ética, que criar algum mundo é necessariamente melhor do que não criar nenhum. É precisamente esse ponto cego que Cabrera expõe ao interrogar a legitimidade moral da criação de um mundo estruturalmente imperfeito:
“O que Leibniz demonstra é que ou este mundo imperfeito era criado ou nada podia ser criado. Por que Deus não enfrentou esta segunda alternativa como séria, do ponto de vista moral?
Não podia ser eticamente bom conter-se, não criando? Para que criar um mundo necessariamente (não circunstancialmente) imperfeito para construir a seguir toda a parafernália moral?”
Cabrera avança então para uma crítica genealógica da própria necessidade das teodiceias, mostrando que elas não surgem de um excesso de racionalidade teológica, mas de uma falha estrutural da vida. A pergunta por Deus, longe de ser originária, emerge apenas quando a existência se revela dolorosa, frustrante e injustificável; é o sofrimento que convoca o tribunal metafísico. Assim, a teodiceia aparece não como prova da perfeição do mundo, mas como sintoma de seu fracasso:
“O "problema da vida" surge apenas quando a vida não funciona. As perguntas da Teodiceia somente aparecem com a questão do "mal", quando começamos a pensar que foi um grande erro a criação do mundo. Se no mundo não existisse sofrimento, jamais teríamos perguntado pelo seu criador, jamais o teríamos procurado para exigir-lhe explicações.”
Por fim, Cabrera radicaliza a acusação ao sustentar que a opção pela criação do ser instaura automaticamente o campo da moralidade, da culpa e da salvação, como tentativas posteriores de administrar um dano originário. A moral, nesse sentido, não redime a criação, mas funciona como uma resposta tardia ao mal estrutural de ter feito existir. O que se coloca, então, é a pergunta decisiva da ética negativa: por que oferecer à criatura a promessa de redenção, quando poderia ter sido poupada do sofrimento desde o início?
“Deus ainda responde processo pelos "males" do mundo, e a opção fatal pelo ser cria, ipso facto, o reino da moralidade.
Toda a parafernália de perdições e salvações deverá seguir-se à ansiosa criação de um mundo imperfeito, ou à imperfeita criação de um mundo qualquer. Por que a criatura não preferiria não sofrer em absoluto a ser-lhe oferecida depois a possibilidade de “salvar-se" do sofrimento?”
Após a crítica de Júlio Cabrera, torna-se inevitável retroceder a Arthur Schopenhauer, reconhecido como o grande patrono do pessimismo filosófico moderno e uma das mais contundentes vozes contra as teodiceias de matriz leibniziana. Embora separados por contexto histórico e vocabulário conceitual, Schopenhauer e Cabrera compartilham uma intuição fundamental: a de que o sofrimento não é um acidente remediável da existência, mas um traço estrutural do próprio ser. Em Schopenhauer, essa estrutura aparece metafisicamente ancorada na Vontade, força cega, incessante e insaciável que se objetiva no mundo e condena todos os seres à carência, ao conflito e à dor; em Cabrera, ela se traduz na noção de mortalidade constitutiva e na crítica ética à criação e à procriação. Ambos, porém, convergem na rejeição da suposição afirmativa segundo a qual existir é, em si, um benefício a ser justificado a qualquer custo.
É nesse sentido que Schopenhauer dirige uma crítica devastadora à teodiceia de Leibniz. Mesmo concedendo, ad argumentandum, que este mundo fosse de fato o melhor entre os mundos possíveis, tal concessão não bastaria para absolvê-lo moralmente. Schopenhauer desloca a questão para um nível mais radical do que o comparativo entre mundos já dados: o criador não apenas escolhe um mundo, mas institui o próprio horizonte da possibilidade. Assim, a responsabilidade não recai apenas sobre o mundo criado, mas sobre o fato de que um mundo melhor não foi tornado possível. A teodiceia falha, portanto, não por insuficiência empírica, mas por uma omissão metafísica decisiva:
“Ainda mesmo que a demonstração de Leibniz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possíveis este é sempre o melhor, essa demonstração não daria ainda nenhuma teodicéia. Porque o criador não só criou o mundo, mas também a própria possibilidade; portanto, devia ter tornado possível um mundo melhor.”
Essa crítica ganha ainda mais força quando Schopenhauer abandona o plano abstrato da metafísica e apela à evidência concreta do sofrimento, desmontando o otimismo não por silogismos, mas por uma espécie de inventário fenomenológico da dor humana. Contra a tranquilidade conceitual das teodiceias, ele opõe a realidade dos corpos feridos, das doenças, das guerras, das prisões e da miséria cotidiana, expondo o abismo entre a ideia de um mundo racionalmente justificável e a experiência efetiva de viver nele. O “melhor dos mundos possíveis” revela-se, então, como uma construção intelectual que só se sustenta à distância do real:
“Se fosse possível pôr diante dos olhos de cada um as dores e os espantosos tormentos aos quais a sua vida se encontra incessantemente exposta, um tal aspecto enchê-lo-ia de medo; e se se quisesse conduzir o otimista mais endurecido aos hospitais, aos lazaretos e aposentos de torturas cirúrgicas, às prisões, aos lugares de suplícios, às pocilgas dos escravos, aos campos de batalha e aos tribunais criminais; se lhes abrissem todos os antros sombrios onde a miséria se acolhe para fugir aos olhares de uma curiosidade fria, e se por fim o deixassem ver a torre de Ugolino, então, com certeza, também acabaria por reconhecer de que espécie é este melhor dos mundos possíveis.”
Desse modo, Schopenhauer não apenas antecipa muitas das intuições que Cabrera radicalizará no plano ético, como também fornece o alicerce metafísico do pessimismo que torna as teodiceias não apenas logicamente frágeis, mas moralmente obscenas. Em ambos os casos, o problema não é explicar o mal dentro do mundo, mas justificar por que houve mundo, quando a alternativa do não-ser — silenciada pelo otimismo afirmativo — poderia ter poupado os seres da dor que nenhuma redenção posterior é capaz de apagar.
Por: Marcus Gualter

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