Sentenças Sobre uma Existência Cruel

 





Há poucos meses, no condado de Cecil, Maryland, a menina de apenas três anos, Nola Dinkins, foi encontrada morta, envolta em filme plástico e abandonada dentro de uma mala em um terreno baldio. Sua mãe relatara falsamente que a criança havia sido sequestrada — mas a investigação revelou que Nola fora brutalmente espancada até perder a consciência com um cinto, em 9 de junho de 2025, em casa. Após uma tentativa frustrada de reanimá-la, a mãe e o padrasto colocaram o corpo na mala e o descartaram. Ambos foram presos e acusados de homicídio, abuso infantil e ocultação de cadáver, podendo enfrentar prisão perpétua.(Link para notícia)


Esse horror não é apenas uma tragédia isolada. Ele força um confronto direto com a arquitetura da realidade sensível: um território onde a inocência é esmagada e arremessada em um moedor de carne chamado existência. A carne não serve de abrigo, mas de cárcere pulsante, num campo saturado de violências silenciosas e irreversíveis. Não há promessa de redenção, nem significado oculto — apenas a queda contínua num abismo de dor sem trégua. Existir não abriga a dor como acidente, mas como produto estrutural, como engrenagem essencial. Schopenhauer já advertia sobre a assimetria entre prazer e sofrimento, instando a que se compare “a impressão do animal que devora outro com a impressão daquele que é devorado”.



Perturba-me a regularidade quase litúrgica com que, diante de horrores como este, desviamos o olhar da causa primordial. Apontamos o dedo para o sadismo dos agressores, para a negligência do Estado, para o acaso monstruoso que colhe vidas frágeis — e, embora tudo isso seja verdadeiro, poupamos a única raiz que sustenta o escândalo da dor: o ato de procriar.


Como se trazer alguém ao mundo fosse moralmente neutro, alheio a qualquer vínculo com o desfecho que o torna intolerável. Preferimos imaginar que a violência é uma falha no percurso, quando muitas vezes ela é apenas a consequência previsível de uma cadeia iniciada por uma decisão — quase sempre irrefletida, quase sempre irracional — de introduzir um ser vulnerável na existência.


O nascimento é o gesto inaugural dessa exposição compulsória à crueldade; a convocação forçada ao jogo brutal do qual ninguém pode abdicar. Ainda assim, permanece envolto na retórica da esperança, blindado pelo automatismo cego do instinto, pela afirmação da Vontade, pela tirania da tradição e pelo delírio narcótico da continuidade. É nesse instante glorificado — e, na maioria das vezes, imposto — que se abre a possibilidade de todas as degradações que virão: fome, violência, estupro, massacre, doença, agonia infantil. Toda tragédia, todo grito sufocado, encontra sua raiz nesse instante inaugural.


O otimista dirá que isso é exceção, um desvio lamentável numa trajetória supostamente voltada ao bem. Repetirá que a vida não precisa de justificativa, não importando o quanto a dor se acumule, pois sempre haverá espaço para a promessa — que jamais se cumprirão — de que “as coisas vão melhorar”.


Para o pessimista, porém, não existe quantidade de felicidade — supondo que algo como “felicidade” realmente exista para os humanos, e não apenas como ilusão passageira — capaz de contrabalançar o peso ontológico de existir. O sofrimento não se dissolve em compensações; ele é o núcleo duro da experiência, impermeável a narrativas redentoras. E a vida, mesmo com as migalhas que ganhamos para pensarmos que ela vale a pena, não passa de uma estadia temporária num campo de dores inevitáveis, cuja sentença foi proferida no instante em que fomos chamados a ser.


Entre aqueles que buscaram sentido na maquinaria indiferente da existência, poucos o fizeram com a obstinação de Albert Camus. Seu projeto consistiu em afirmar que, mesmo diante do absurdo, a vida deveria ser sustentada — não por necessidade lógica, mas por um ato de revolta. Essa defesa, celebrada como coragem, pode ser lida como recusa em admitir a extensão do horror que descreve: transformar uma condenação em façanha, um castigo em vitória.


Thomas Ligotti, em The Conspiracy Against the Human Race, observa que, em O Mito de Sísifo, Camus oferece a tarefa impossível de Sísifo como justificativa para não encerrar a vida. Camus insiste: “Devemos imaginar Sísifo feliz enquanto empurra sua rocha até o topo da montanha, de onde ela sempre despenca, repetidas vezes, para sua desolação.” Ligotti sugere que esta é uma forma de fé travestida de lucidez: viver é aceitável, ou ao menos suportável, precisamente por ser absurdo. Mas aceitar o absurdo não altera a essência da dor; apenas a reconhece, nua e implacável, sem oferecer saída ou alívio 


Ah, se abraçar o absurdo pudesse nos proteger das dores mais cruas, das doenças que corroem sem piedade, do desânimo que paralisa, das torturas que deformam corpos e almas, da morte inevitável. Se a aceitação do absurdo pudesse, de alguma forma, justificar a morte de Nola, torná-la menos insuportável ou conferir algum sentido à sua agonia, talvez ainda houvesse uma réstia de consolo. Mas nada disso acontece. O absurdo permanece como testemunha muda da injustiça e da miséria que permeiam a existência.



A percepção de que somos apenas sacos de carne com consciência, sujeitos a dor, doença e morte inevitáveis, encontra eco no pensamento de Ernest Becker, em A Negação da Morte. Ele descreve essa condição com clareza:


“[…] o homem é um verme e um alimento para os vermes. Este é o paradoxo: ele está fora da natureza e inevitavelmente nela; ele é dual, está lá nas estrelas e, no entanto, acha-se alojado num corpo cujo coração pulsa e que respira […]. Seu corpo é um invólucro de carne, que lhe é estranho sob muitos aspectos — o mais estranho e repugnante deles é o fato de que ele sente dor, sangra e um dia irá definhar e morrer.”


A consciência da morte diferencia-nos dos animais, que continuam a pastar sem medo da finitude. Nós, no entanto, carregamos esse peso em cada instante — a vida inteira assediada pela lembrança da própria dissolução. Cada sofrimento, cada doença, cada perda confirma que estamos confinados em um território do qual não há retorno.


Essa ideia encontra paralelo na filosofia de Emil Cioran — exilados metafísicos, é o que somos. Exilados de nossa verdadeira pátria — o nada. A vida não é passagem ou aprendizado para um estado superior, ela é o próprio exílio. Não há refúgio, nem momento em que a carne e a consciência deixem de lembrar que a existência é um campo de horrores inevitáveis. Cada instante vivido é confirmação da nossa vulnerabilidade, da nossa impotência e da crueldade intrínseca do mundo.


Ser parido neste pavilhão de horrores — um universo onde crianças são sequestradas e mortas de maneiras indescritíveis, onde animais esquartejam outros animais bilhões de vezes ao dia, onde acidentes, doenças súbitas e violências aleatórias podem nos ceifar a qualquer instante — não me parece uma dádiva. Cada existência é lançada a este caos sem escolha, e quanto mais olhamos à nossa volta, mais percebemos que o mundo não poupa ninguém, ninguém. Somos frágeis diante de uma realidade que não se importa com os corpos eviscerados e consciências feitas para sofrer em uma procissão de dor. O coração diz que isso não pode estar certo…

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