O Sentido do Suicídio


 

Penso com a regularidade naquela sentença de Schopenhauer: “O suicida quer a vida, apenas está insatisfeito com as condições em que a encontra.” Mas será mesmo? Se eu fosse suicida, duvido que quisesse a vida sob qualquer disfarce. Não são as circunstâncias que me exaurem, mas o fato inapelável de estar condenado a experimentá-las. A própria condição de existir — esta lucidez fatigada, interminável — já constitui uma afronta. A vida não me nega promessas: distribui-as em excesso — excesso de dor, de absurdo, de uma viscosidade entediante que contamina até os simulacros de prazer.


E, no entanto, permaneço. Não por fé — essa superstição com pretensões metafísicas —, tampouco por esperança, delírio terminal dos ingênuos, mas por inércia. O corpo prossegue, maquinal, como um cão senil que já esqueceu por que late. O sangue cumpre sua tarefa, os pulmões obedecem, a consciência se arrasta com uma dignidade quase risível. Vivo por hábito, não por convicção. Os dias se repetem como uma piada cósmica exaurida de sentido. Se a morte oferecesse não um fim, mas um repouso sem retorno, talvez já tivesse partido. Mas ela também é enigma — e o nada, por mais sedutor, carrega a suspeita insuportável de ser apenas outra forma do mesmo cárcere.

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O suicídio não é uma solução, mas uma hipótese. Uma possibilidade em suspensão. Um consolo mental — irrealizável, talvez, mas necessário. Sua mera presença já basta. É como uma porta entreaberta num quarto saturado de sombra: sabemos que está ali, mas não a cruzamos. Talvez seja isso o que me ancora — a certeza muda de que posso sair. E é essa fuga virtual que torna a permanência suportável. A ideia do fim é o que atenua a obscenidade do meio.


Não me sustento por apego, mas por uma ilusão astuta de liberdade. Não vivo por querer, mas por conservar — mesmo que no abstrato — o poder de cessar. Essa margem fictícia, essa soberania imaginária diante do escárnio cósmico, é o que me impede de romper. O pensamento da morte voluntária, essa flor negra e muda, cresce em mim como ironia íntima: promessa amarga que consola justamente por nunca se cumprir..


Se um dia me fosse retirada até essa derradeira ficção — se a morte também se tornasse interditada —, então sim, a existência se revelaria em sua forma final: cárcere absoluto, condenação sem brecha. Mas enquanto o suicídio persistir como sombra latente, como botão oculto cravado no porão da consciência, posso continuar. Não por querer ficar, mas por não encontrar força para partir. Como quem habita um naufrágio e, já vencido, não nada nem afunda — apenas flutua.


A ideia do suicídio não me aparece como desejo, mas como entidade. Não é vontade: é estrutura. Presença muda, vigília sem exigência. Saber que posso pôr fim é, por paradoxo, o que me permite suportar o resto. Talvez aí resida o derradeiro absurdo da consciência: o gesto que me libertaria é o mesmo que, mantido em suspensão, me ancora. A possibilidade do fim é o que adia o fim. O suicídio — esse espectro imóvel — não me chama, mas embala. E é nessa quietude que reside sua força.


Assim, permaneço. Sem crença, sem impulso, sem apetite. A vida — essa maquinaria cega, esse lapso biológico sem finalidade — não merece meu ódio: apenas meu desprezo exausto. O nascimento foi o acidente inaugural; tudo o mais é consequência de uma catástrofe original. A morte não consola — apenas cessa. Não acolhe, apenas tolera. E é por saber que posso, a qualquer instante, silenciar esta farsa, que ainda suporto assisti-la.


Cioran, cartógrafo da decomposição interior, escreveu que o pensamento do suicídio é uma ideia que nos ajuda a viver. Talvez seja isso: o suicídio não como gesto, mas como presença invisível; não como ato, mas como lembrança de que ainda se pode agir. A única soberania que resta ao condenado: a de encerrar, por conta própria, a própria sentença. Um luxo terminal — privilégio amargo dos lúcidos.


Não é a esperança que me retém — essa infantilidade tardia dos que ainda creem em resgates —, mas o saber lúcido e irrevogável de que posso, a qualquer momento, renunciar ao ser. Essa consciência, fria e silenciosa, basta para desarmar qualquer impulso de resistência. Persisto não por fé, nem por apego, mas por ausência de um motivo suficientemente imperativo para cessar. Não há urgência no fim quando ele se oferece como possibilidade constante. O nada, ao menos, não exige esforços — e talvez por isso me atraia: não como desejo, mas como repouso. Assim, sigo não por vontade, mas por exaustão; não por ilusão, mas por uma lucidez que já não pede respostas, apenas o direito de calar.

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