A Fragilidade da Vida Humana
“Anseio ser livre – desesperadamente livre. Livre como os natimortos são livres.” Emil Cioran
Existe uma liberdade singular e exclusiva daqueles que jamais vieram a existir — uma liberdade radical, imaculada pelo peso da consciência, incólume às dores do corpo e imune às imposições da vida social. A condição de estar vivo é, desde sua gênese, a exposição contínua a um risco inevitável: enfermidades, acidentes, perdas irreparáveis, decadência progressiva, humilhações e colapsos variados. A existência se revela, desde o primeiro instante, como uma experiência inexorável de vulnerabilidade, em que toda tentativa de equilíbrio permanece precária e toda sensação de segurança, meramente ilusória. A consciência, longe de constituir um refúgio ou consolo, amplia e intensifica a percepção do sofrimento e da finitude irreversível. Não há proteção definitiva; nenhum organismo se mostra invulnerável; nenhum vínculo resiste incólume às intempéries da vida. Embora costume-se enaltecer a vida como um dom, sua estrutura essencial manifesta-se, antes, como um terreno de fragilidade inelutável, que nenhuma força humana pode anular ou transpor. O simples ato de adentrar o mundo é, em sua essência, uma perda radical — a perda do silêncio primordial, da paz imperturbável, da imunidade frente ao mal. A vida não é frágil por contingência ou acaso; ela é fragilidade em sua definição ontológica.
Também somos frágeis porque, para além das ameaças externas que cercam nossa existência, carregamos em nós uma fragilidade interna e incessante: o querer. A vontade de viver, que parece mover e sustentar toda a ação humana, é, em sua essência, um esforço contínuo e insaciável, um impulso que jamais encontra repouso. Como Schopenhauer expõe, “Querer, esforçar-se, eis todo o seu ser: é como uma sede inextinguível. Ora, todo querer tem como princípio uma necessidade, uma falta, portanto, uma dor: é por natureza, necessariamente, que eles devem tornar-se a presa da dor.” Assim, nossa existência está condenada a oscilar entre a dor do desejo e o tédio da sua ausência, uma alternância cruel que torna a vida uma sucessão interminável de sofrimentos e vazios. Não apenas somos frágeis por sermos corpos vulneráveis ao acaso do mundo, mas também por sermos seres que constantemente padecem do próprio querer, que nos conduz a uma exposição permanente à insatisfação e à dor. Essa fragilidade profunda e dupla — física e ontológica — nos revela como a vida não é só um campo minado de riscos externos, mas também uma prisão interna onde o impulso vital se torna a própria fonte de sofrimento e desespero.
No livro “Nos cumes do desespero” Emil Cioran demostra bem como detemos o monopólio do sofrimento:
“Pergunto-me por que razão o sofrimento não oprime senão uma minoria. Existe alguma razão para esta seleção isolar, de entre os indivíduos normais, uma categoria de eleitos destinados aos suplícios mais terrí-veis? Algumas religiões afirmam que o sofrimento é o meio de que a Divindade se serve para vos pôr à prova, ou para vos fazer expiar um pecado. Essa conceção pode ser válida para um crente, mas aquele que vê o sofrimento atingir, indiferentemente, puros e inocentes dificilmente a poderá aceitar. Nada pode justificar o sofrimento, e querer fundá-lo sobre uma hierarquia de valores é estritamente impossível, partindo do princípio de que tal hierarquia possa existir.
[…]
Perguntamo-nos como podem eles acontecer e, uma vez que acontecem, como é que podemos falar ainda de finalidade e de outros disparates. O sofrimento impressiona-me tanto que perco quase toda a coragem.
Não consigo entender a razão do sofrimento no mundo; que ele derive da bestialidade, da irracionalidade, do demonismo da vida, isso explica a sua presença, mas não proporciona uma justificação. É, pois, provável que o sofrimento não tenha nenhuma, como a existência em geral.
[…]
Deter o monopólio do sofrimento equivale a viver suspenso sobre um abismo. Todo o verdadeiro sofrimento é um.”
[…]
Perguntamo-nos como podem eles acontecer e, uma vez que acontecem, como é que podemos falar ainda de finalidade e de outros disparates. O sofrimento impressiona-me tanto que perco quase toda a coragem.
Não consigo entender a razão do sofrimento no mundo; que ele derive da bestialidade, da irracionalidade, do demonismo da vida, isso explica a sua presença, mas não proporciona uma justificação. É, pois, provável que o sofrimento não tenha nenhuma, como a existência em geral.
[…]
Deter o monopólio do sofrimento equivale a viver suspenso sobre um abismo. Todo o verdadeiro sofrimento é um.”
Sempre observei uma assimetria na vida, os prazeres, quando vem, são fugazes e efêmeros, as dores estão conosco a todo momento, o limite de toda dor é uma dor maior ainda. Em sua obra “The Human Predicament”, o filósofo Antinatalista Sul-Africano, David Benatar, escreve o seguinte:
“Considere também as dimensões temporais do ferimento ou doença e da recuperação. Uma pessoa pode se ferir em segundos: a pessoa é atingida pela bala ou projétil, ou é empurrada ou cai, ou sofre um derrame ou ataque cardíaco. Nesse e em outros casos, a pessoa pode instantaneamente perder sua visão ou audição ou o uso de um membro ou anos de aprendizado. O caminho para a recuperação é lento. Em muitos casos, a recuperação completa nunca é obtida. A ferida chega num instante, mas o sofrimento que dela resulta pode durar uma vida inteira.”
No livro de Nosso Senhor, em Provérbios 27:1, está escrito: “Não te glories do dia de amanhã, porque não sabes o que trará o dia.” Essa passagem não é apenas um conselho prudente, mas um reconhecimento implacável da fragilidade absoluta que permeia nossa existência. Não há, em nenhum momento, garantias de que sobreviveremos até o final do dia que se inicia. Não sabemos se amanhã nos encontrará vivos, tampouco se as próximas horas serão poupadas das mais brutais formas de sofrimento. Não existe nenhuma promessa contra a queda súbita da saúde, contra o golpe inesperado da doença, contra o acidente que destroça o corpo, ou contra a violência que pode nos subjugar, torturar ou até mesmo esquartejar. A qualquer instante, o equilíbrio frágil que sustenta a vida pode ser destruído. Não se trata de um cenário improvável ou distante, mas de uma possibilidade constante e iminente que se impõe sobre todos nós, sem exceção. Assim, a vida não é um espaço de segurança, mas um campo minado invisível, onde cada passo pode ser o último, e onde o futuro imediato é uma incógnita implacável, carregada das mais sombrias possibilidades. Essa vulnerabilidade radical desmonta qualquer pretensão de controle, qualquer ilusão de permanência, e reduz a existência a um fio tênue que pode se romper a qualquer momento, deixando no seu lugar o vazio do nada. Gloriar-se antecipadamente no amanhã, portanto, é uma arrogância tola, pois a única certeza que realmente possuímos é a fragilidade irreversível que nos acompanha desde o primeiro instante.
A fragilidade humana atinge sua expressão mais radical quando percebemos que não apenas somos suscetíveis ao sofrimento físico e à deterioração orgânica, mas também expostos a um universo onde mérito e destino não guardam qualquer relação, onde a injustiça não é exceção, mas estrutura. A narrativa de Jó, talvez o relato mais perturbador das Escrituras, encena esse abismo moral: um homem justo, irrepreensível diante de Deus, tem sua vida destruída não por erro ou falha, mas por uma aposta obscura entre o divino e o demoníaco — como se sua existência fosse apenas um instrumento, um dado lançado no tabuleiro cósmico. Jó não é punido por pecar, mas por existir em um mundo onde a justiça é irrelevante e a integridade não garante sequer a preservação da pele. Ele perde os filhos, os bens, a saúde, a paz — e implora pela morte como quem suplica por uma trégua contra a crueldade absurda do real. A mesma lógica, infinitamente mais violenta, tomou forma em Hiroshima, quando, num instante, dezenas de milhares de vidas foram reduzidas a poeira e vapor, sem culpa, sem aviso, sem causa individual. Corpos de crianças, idosos e civis comuns foram liquefeitos pela explosão atômica como se nunca tivessem existido; os que sobreviveram carregaram sequelas incuráveis, dores físicas e psíquicas perpétuas, malformações hereditárias, pesadelos radioativos. Nada ali foi merecido. Nada ali foi evitável. E esse é o ponto: a vida humana é um estado de exposição permanente ao sofrimento injustificável, à dor que não ensina, à perda que não edifica, ao horror que não pede permissão. Não há métrica segura, nem plano de fuga, nem merecimento que nos imunize — somos frágeis não apenas na carne, mas no destino, entregues a um mundo que nos ignora com a mesma indiferença com que extermina.
Após considerar a fragilidade estrutural da existência humana, recordei-me de um capítulo do livro Mal-estar e Moralidade, de Júlio Cabrera, em que o autor oferece uma descrição sistemática e clínica do que significa existir em um corpo submetido a constantes possibilidades de deterioração. Cabrera não se limita a constatações abstratas sobre o sofrimento: ele elenca detalhadamente enfermidades graves — como Alzheimer, esclerose múltipla, distrofias musculares, cânceres diversos, AVCs, paralisias, insuficiências cardíacas e respiratórias — e mostra que tais condições não são exceções estatísticas, mas probabilidades concretas ao longo de qualquer trajetória vital. Doenças neurodegenerativas, crônicas ou terminais compõem um espectro de vulnerabilidades permanentes que se intensificam com o tempo, e contra as quais nenhum indivíduo tem garantias. A infância já pode apresentar sofrimentos físicos e psíquicos severos; a adolescência introduz transtornos mentais e emocionais muitas vezes incapacitantes; a vida adulta é atravessada por riscos contínuos e, na velhice, o declínio físico se torna regra. A medicina moderna, embora prolongue a sobrevida, frequentemente o faz à custa de novas dependências, dores e processos de medicalização que estendem a experiência do sofrimento. Assim, a vida humana, no que tem de mais concreto, é uma sucessão de instabilidades fisiológicas e psicológicas que expõem o indivíduo a danos irreversíveis. Não se trata, portanto, de um “acidente” ocasional que atinge alguns, mas de uma condição constitutiva: a existência como deterioração gradual. Cabrera demonstra, com base em dados empíricos e argumentação filosófica, que viver é estar exposto a falhas sistêmicas do organismo e da mente, numa trajetória de desgaste previsível e sem blindagem ética ou biológica. Existir é sustentar, por tempo indefinido, um processo de deterioração que não admite exceção nem trégua.

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