Não Tragam Mais Ninguém




Penso com frequência — quase em tom de ladainha, como quem murmura uma oração íntima ao absurdo — no que seria de nossos pequenos se, ao saírem do ventre, recebessem de imediato uma consciência plena, lúcida, madura. É uma hipótese improvável, admito; algo entre o delírio e a especulação pueril. Mas essa imagem me persegue. Vejo o recém-nascido abrindo os olhos e, em vez de chorar pela violência do ar que lhe invade os pulmões, chorando por já saber — num lampejo de clareza sobrenatural — o que o aguarda: o fardo dos dias, a dor como permanência, a perda, a solidão, o desgaste do corpo, o apodrecimento da alma, a morte. Talvez, diante de tamanha revelação, calasse ali mesmo o impulso vital — não por desespero, mas por lucidez.

Nunca me pareceu evidente que o gesto de criar uma vida fosse, por si só, um ato de amor. Antes, parece-me muitas vezes um capricho mascarado de afeto, uma decisão tomada à sombra de uma ignorância conveniente — ou de um egoísmo mal disfarçado. O nascimento não é um dom, mas uma sentença. Toda criança, ao ser lançada ao mundo, recebe uma pena irrevogável: sofrerá. Ainda que conheça momentos de ternura, serão interlúdios entre os açoites. Ainda que viva em relativo conforto, a morte a alcançará. Com que direito, então, se impõe essa farsa? Com que autoridade moral alguém joga um ser na arena do tempo, onde perderá tudo o que amar, onde será ferido, onde adoecerá, onde — inevitavelmente — morrerá? Nenhuma permissão foi dada. Nenhum pacto foi assinado. A criança não escolheu vir — foi arrancada do nada tranquilo e lançada num tudo que sangra. Gerar um filho, no fundo, é fazer uma aposta com o sofrimento alheio. E é sempre o outro que paga a maldição.


O sofrimento é o denominador comum da existência, a moeda pela qual tudo se paga. Não há nascimento que não seja também o início de uma lenta crucificação. A criança que hoje sorri, amanhã terá febre; a que hoje aprende a andar, um dia aprenderá a cair — e a perder, e a temer, e a morrer. É uma progressão inevitável, e o tempo, esse carrasco silencioso, garante que nenhuma vida escape ilesa. Nem mesmo o Cristo, figura máxima do consolo espiritual, foi poupado da agonia: suou sangue no Getsêmani, implorou ao Pai por alívio, gritou na cruz pelo abandono. Se até o suposto Filho de Deus tremeu diante da dor, que esperança resta ao resto de nós? Se nem Ele quis estar aqui naquele instante, por que quereríamos nós? A história do mundo é, no fundo, uma sucessão de horrores: pestes, guerras, abusos, ausências. Não há berço que proteja do desastre. E ainda assim, insistem em trazer mais — como se este vale de lágrimas fosse jardim, como se a luz compensasse o peso da sombra.

Esse pensamento — o de que a vida é uma herança de feridas, uma transmissão obscena de sofrimento disfarçado de amor — me levou a lembrar de um poema de Philip Larkin, autor que soube condensar em poucos versos toda a tragédia da genealogia humana. Em This Be the Verse, Larkin nos lembra que não apenas somos moldados pelos erros de nossos pais, mas também inevitavelmente os perpetuamos, como se o simples fato de nascer fosse já uma condenação a repetir o mesmo ciclo de miséria. Seu conselho final — “não tenha filhos” — não soa como provocação, mas como o mais lúcido gesto de compaixão possível num mundo onde a dor é hereditária.

“Eles te ferram, as mães e os pais.

Fazem-no, ainda que sem querer.

Passam a ti os seus defeitos e ademais

Adicionam alguns extras só para te retorcer.

Mas eles também foram ferrados

Por tolos com roupas tradicionais.

Que metade do tempo eram melosos e severos

E na outra metade, violentos animais.

O homem lega ao homem a desgraça.

Ela se aprofunda como um abismo costeiro.

Saia do mundo antes que ele te desfaça,

E não tenha filhos neste pardieiro.”

§

Podemos, sim, ver diversos Monges Budistas falando incansavelmente platitudes do tipo: “a vida é bela!”, “aproveite sua vida o maior possível”, “Vai dar tudo certo”. Porém, no século IV a.C, Sidarta Gautama - o Buddha - proferiu de maneira aforismática que faltam aos nossos contemporâneos. Talvez uma das passagens mais emblemáticas do Dhammapada seja esta:

“Não nasça, não se torne, não cresça, não floresça — esta é a maior paz.”
“O nascimento é sofrimento, o nascimento é dor, o nascimento é angústia; de tudo o que nasce, o nascimento é o mais sofrido.” 

Essa passagem, tão direta e austera, revela um insight que atravessa milênios: o simples fato de nascer é uma entrada inevitável no sofrimento. Não há celebração ingênua ou desculpa romântica capaz de ocultar a realidade crua que o próprio Buda denunciou. A “maior paz” não é um nirvana distante, mas a ausência do início da dor — o não tornar-se. É a renúncia consciente ao ciclo cruel que nos aprisiona entre nascimento e morte, uma renúncia que ecoa a razão da ética antinatalista: não causar sofrimento onde não foi pedido. Enquanto a humanidade teima em prolongar sua agonia, talvez o gesto mais radical seja reconhecer que a verdadeira compaixão reside em impedir que a roda do sofrimento gire mais uma vez.

Chega um momento em que o simples fato de continuar respirando parece um ultraje. O dia amanhece — sempre — e, com ele, renascem os compromissos, os ruídos, as máscaras, os deveres. Somos arrastados, ainda sonâmbulos, por dentro de um mundo que não escolhemos, carregando a memória do nada de onde viemos. Ninguém pediu nada disso. A vida se impõe como uma sentença, não como um presente. Acordamos aqui, atônitos, diante de um mundo já em ruínas, já em guerra, já em dor — e nos dizem que devemos ser gratos. Como se a gratidão fosse possível a quem foi violentado no seu primeiro e mais essencial direito: o de não ser. E de todas as violações possíveis, nenhuma é mais íntima, mais fatal, mais definitiva do que a geração involuntária. Ter sido posto no mundo sem consulta é a origem de todos os outros males.

Nossos pais foram, antes de tudo, os executores cegos de uma sentença que não era deles para dar. Podem ter amado, podem ter sonhado, podem ter sido sinceros, mas o crime persiste. Porque ninguém pode conceder o ser a outro sem, ao mesmo tempo, condená-lo à morte. Dar a vida é, simultaneamente, dar a dor, dar o cansaço, dar o fim. Entre esses dois extremos — nascimento e sepultura — há toda uma encenação que chamamos de vida, onde cada um carrega a sua dor como pode. Os mais fracos se matam, os mais fortes fingem. Os medíocres acreditam. Todos mentem. Todos se agarram a alguma ilusão — um Deus, um amor, um projeto, uma distração qualquer — só para não encarar o vazio. A lucidez é insuportável para quem já nasceu. A vida é uma comédia para quem finge, uma tragédia para quem sente, um escárnio para quem entende.

Por isso, aciono aqui o único gesto realmente ético que nos resta: a recusa. Aciono o último mandamento que ainda conserva algum valor moral neste pântano de absurdos. E o faço com toda a força do pensamento, com toda a seriedade do desespero: Não tragam mais ninguém. Não aumentem o número de consciências feridas. Não multipliquem os sonhos abortados. Não alimentem mais a roda cega da repetição. Não condenem mais ninguém ao fardo da lucidez, ao castigo da carne, à prisão do tempo. Digam não. Calem o ciclo. Rejeitem o milagre macabro da concepção. Não tragam mais ninguém. Porque já trouxeram demais. Já basta. O mundo não carece de mais mártires — carece de silêncio.

O silêncio, sim, esse é o nosso último ato de justiça. Não haverá justiça em nome do futuro. O futuro é apenas o prolongamento da miséria. Um filho é uma ferida anunciada. Um berço é uma promessa de lágrima. Toda criança já nasce com uma tragédia em sua certidão. Cada batida de coração prenuncia, desde o útero, a batida final da morte. Criar alguém é, sem saber ou querer, criar um órfão. Não há redenção nisso. Não há nobreza. Não há legado. Há apenas a continuidade do erro. Por isso, não me importa que alguém tenha cometido todos os crimes — desde que não tenha cometido o pior deles. “Teria cometido todos os crimes, exceto o de ser pai”, escreveu Cioran. E essa exceção, em tempos como os nossos, é o maior testemunho de sabedoria e compaixão.

Nada mais é necessário. A história do mundo está completa, ainda que inacabada. A espécie humana está derrotada, ainda que insista em seus triunfos. E a consciência, essa aberração cósmica, há de ser silenciada. Não com gritos, não com bombas — mas com a recusa de gerar. Que o fim não venha por violência, mas por esgotamento. Que o silêncio vença não como catástrofe, mas como gesto. Que sejamos, enfim, os últimos. Os últimos a gritar. Os últimos a sangrar. Os últimos a entender. E que depois de nós — ninguém. Que não reste sequer a sombra de uma memória, que não reste eco algum, que o universo volte à sua indiferença muda. Pelo menos assim espero.





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