Contra a Raça Humana
“ Não nascer é, sem dúvida, o melhor plano de todos. Infelizmente, não está ao alcance de ninguém.” Emil Cioran(1911-1995)
Nascer é uma expropriação radical, um ato de violência metafísica contra aquele que, até então, repousava na serenidade inviolável do não-ser. Ser lançado à existência é perder, de uma só vez, a integridade do nada, a paz sem memória, a inocência de jamais ter participado da deterioração do mundo. Aquele que nasce não apenas é arrancado do silêncio primordial, mas é atado, sem qualquer consulta, à engrenagem de um cosmos indiferente, onde dor, frustração e decomposição são não apenas possibilidades, mas estruturas inevitáveis. A vida nos é imposta como uma sentença inapelável, um fardo hereditário que se transmite sob o disfarce de dádiva, quando na verdade é herança de sofrimento, acúmulo de ausência e fadiga. Cada respiração inaugura uma dívida que não contraímos, cada batimento reafirma o erro ontológico de ter sido puxado para fora do nada. Não há justiça possível nesse início: o nascimento é um ato ético inadmissível, um crime sem autor claramente identificável, cometido em nome da perpetuação cega de um ciclo que transforma o acaso biológico em fatalidade existencial. Somos vítimas da decisão de outrem, prisioneiros de um acontecimento sem justificativa, condenados a sustentar com o próprio corpo e com a própria angústia uma presença que nunca pedimos. A existência — o exílio involuntário da única condição verdadeiramente livre: a de nunca ter sido.
Essa percepção, de que o nascimento é uma queda e não um começo encontra ecos na antiga tradição gnóstica, que via o mundo como obra de um demiurgo imperfeito — um cárcere onde a centelha da consciência foi aprisionada por engano. Existir, nesse sentido, é carregar a culpa de um erro cósmico. O corpo, para os gnósticos, era a prisão da alma; e o mundo, um labirinto de matéria degradada, incapaz de qualquer redenção plena. Assim, não é apenas o nascimento que se torna um escândalo ético, mas o próprio fato de estar encarnado — a dor de estar inserido num drama que começou antes de nós e prosseguirá depois, movido por uma maquinaria cega.
Penso que todos já nascemos negativos. A primeira manifestação da vida é o choro — e não se trata de mero reflexo fisiológico, mas de uma espécie de lamento inaugural, de intuição muda da tragédia que se inicia. Há algo profundamente simbólico nesse pranto automático: como se o recém-nascido soubesse, sem ainda poder saber, que foi expulso de um estado ontologicamente superior — o nada. Não se trata de romantizar a ausência, mas de reconhecer que, na escala do sofrimento, a inexistência ocupa o grau mais puro de inocência. O útero era apenas o vestíbulo de um mundo que exige, frustra, adoece e corrói. Atravessar o umbral do nascimento é ser empurrado para dentro de uma engrenagem impessoal, cega, que não se importa com nossa vontade porque ela sequer foi consultada. E assim somos lançados à existência como quem é arrancado de um sono sem sonhos para cair em vigília perpétua, obrigados a carregar um corpo que degenera, uma mente que sofre e um nome que jamais escolhemos.
É evidente que tudo isso que escrevo não reivindica estatuto de verdade objetiva — trata-se menos de uma doutrina do que de uma resposta existencial a um desconforto profundo e irredutível. Não falo a partir de um método, mas de uma experiência: a de perceber, com nitidez dolorosa, que há algo estruturalmente errado em estar aqui. Essas palavras não pretendem convencer, mas registrar: registrar a intuição de que o nascimento não é um começo, mas uma ruptura; não uma promessa, mas uma condenação. Talvez seja mesmo um delírio, mas um delírio lúcido — um modo de pensar que emerge quando os véus do otimismo se rasgam e resta apenas o real em sua crueza inapelável. Não é ciência, nem filosofia acadêmica; é uma forma de expressão trágica que tenta, com os instrumentos da linguagem, dar conta do absurdo de existir sem ter sido consultado. Não há tese, apenas a tentativa de permanecer honesto diante da vertigem de ser.
Essa condição imposta revela um mecanismo oculto e implacável, uma rede subterrânea de forças que entrelaçam o biológico e o cósmico para manter a raça humana presa num ciclo interminável de dor e desgaste. Não se trata de uma conspiração consciente, mas de uma articulação silenciosa, um entrelaçamento inevitável onde o acaso se metamorfoseia em prisão, e o nascimento, em sentença definitiva. Somos peças lançadas num tabuleiro invisível, cujas regras nunca pudemos conhecer, conduzidos por engrenagens que giram independentemente da nossa vontade ou entendimento. Esse emaranhado estrutural nos aprisiona desde o primeiro instante, lançando-nos numa trajetória marcada pela degradação, pela perda, pelo cansaço existencial — uma espécie de cadeia invisível, feita de tempo e matéria, que envolve a vida e lhe rouba a possibilidade da recusa. A “conspiração” reside justamente nessa interdependência silenciosa e inexorável que transforma o mero ato de nascer em uma imposição imutável, uma sequência forçada na qual o ser se encontra irremediavelmente atado, não por escolha, mas pela própria arquitetura do existir. É o labirinto oculto do ser onde a esperança é um farol distante e a liberdade, um eco apagado, revelando que a existência não é um dom, mas a armadilha silenciosa que prende a essência na matéria do sofrimento.
A trama da vida se organiza em torno de um paradoxo escancarado: para viver, é preciso ferir — o ambiente, os outros, a si mesmo. A própria biologia é um sistema de agressão programada, onde a manutenção do organismo exige destruição constante, onde cada célula viva é também uma ameaça ao equilíbrio de algo que existia antes dela. Mover-se é rasgar o espaço; alimentar-se é participar da cadeia de dano; desejar é instaurar a falta, e sofrer é apenas o tributo cobrado por essa maquinaria. Nada em nós é neutro: a respiração oxida, a digestão decompõe, o toque desgasta. O que chamamos de “vida” é apenas a sequência de operações de consumo e ruína, um circuito que se autojustifica pelo imperativo da continuação — viver para continuar vivendo, como se o próprio movimento se bastasse, mesmo quando esvaziado de sentido. Essa é a conspiração verdadeira: uma engrenagem cega que nos obriga a perseverar em nome de nada, um motor absurdo que gira por girar, cujo combustível é o desgaste de tudo o que toca. Não fomos convidados a existir — fomos empurrados para um ciclo onde o custo da permanência é a corrosão incessante do ser. Por isso, Fernando Pessoa especulou que “viver parece-me um erro metafísico da matéria, um descuido da inação” — como se a própria substância do mundo, por um lapso impensado, tivesse rompido o seu repouso primordial e, com isso, inaugurado a calamidade do movimento, do querer e da consciência.
O fato de toda essa engrenagem do sofrimento ter como ponto de partida um ato banal — e por vezes eufórico — como a relação sexual, expõe o grau de absurdo em que estamos enredados. Aquilo que deveria ser expressão de liberdade ou de prazer torna-se, retroativamente, o gatilho da maior de todas as violências: a criação de uma consciência. O prazer de dois gera a dor de um terceiro — e esse terceiro é lançado, sem escolha, no ciclo de deterioração que é a vida. Viver é pagar pelo gozo alheio. Se a humanidade fosse guiada por uma lucidez mínima — e não por impulsos cegos ou fantasias biográficas — o nascimento não seria celebrado, mas evitado com piedade. Como escreveu Schopenhauer, em seu Parerga e Paralipomena:
“ Imagine-se por um instante que o ato da geração não era nem uma necessidade nem uma voluptuosidade, mas um caso de pura reflexão e de razão: a espécie humana subsistiria ainda? Não sentiriam todos bas tante piedade pela geração futura para lhe poupar o peso da existência, ou, pelo menos, não hesitariam em impor esse a ela a sangue frio?”
No fundo, toda crítica à vida é um apelo silencioso ao nada — não como negação ruidosa do mundo, mas como reconhecimento da superioridade ontológica da ausência. O nada não fere, não frustra, não exige. É o único estado verdadeiramente isento de dor, ilusão e desgaste. Por isso, ao recusar a reprodução, não renunciamos à vida, mas à sua imposição. Negar a continuidade é o gesto mais ético que resta diante de um mundo onde nascer já é uma condenação. E é nesse gesto que se desenha o contorno da minha conspiração contra a raça humana — uma conspiração sem sangue, sem armas, sem ruído, fundada unicamente na recusa de perpetuar o ciclo do sofrimento. Uma conspiração de silêncio e lucidez, cujo objetivo não é destruir a humanidade, mas libertá-la do fardo de continuar. A única herança que me parece digna de ser deixada é esta: a interrupção compassiva de um erro milenar. Porque não nascer, como disse Cioran, ainda é o melhor plano de todos.

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